uma possível interpretação do conto As doze princesas bailarinas, dos irmãos Grimm
leia o conto neste endereço: https://fairytalelandstories.wordpress.com/2014/10/21/as-doze-princesas-bailarinas-dos-irmaos-grimm/ Uma brevíssima introdução Começamos relembrando um dos muitos pensamentos antigos que têm se confirmado sempre: não ficamos sozinhos nem mesmo quando estamos sozinhos. Há uma multidão dos mais variados tipos dentro de nós. Uma confusão, mas também uma dádiva, não é mesmo? Mantendo sempre em vista essa ideia, veremos que as personagens dos contos de fada podem ser compreendidas como metáforas das diferentes partes que existem dentro de nossa mente e que nos influenciam o tempo inteiro, mesmo quando não temos conhecimento ou controle desse processo. Que seria de nós se fôssemos como os personagens brancos ou pretos do mundo das fadas? No entanto, essas histórias transbordam uma riqueza tão grande, como pode! Tendo atores assim, tão direto ao ponto – transparentes e descomplicados. Mas e se a gente pensar nelas todas como uma pessoa só? Nem sempre somos somente uma bela e nobre princesa. Podemos ser também uma bruxa horrorosa... Depende do dia, depende da hora. Podemos ser uma coisa, ou outra coisa oposta, ou então podemos ainda ser duas ou mais coisas ao mesmo tempo. Daí chegamos mais perto do que realmente somos: um monte de gente dentro de um só corpo e de uma só alma. Dá muita briga, mas também dá o que temos de único e mais valioso. O uno na diversidade. Só mais um pensamento bem antigo: encontramos fora o que está, na verdade, dentro. Por vezes as pessoas com quem convivemos, as situações e lugares por onde passamos, são o espelho que reflete o nosso avesso. Apontam para algo que não conseguimos ver de forma clara, mas que nos pertence e faz parte daquilo que somos e também do que estamos destinados a ser. O encontro entre as diversas personagens do conto pode ser também encarado dessa forma. É bom lembrar sempre disso por enquanto. Vamos, agora, dar uma olhadinha na nossa trama. Sobre o nosso conto Essa não é uma história de amor entre um homem e uma mulher. E, embora seja bonita até certo ponto, o final pode se mostrar até bem sem sal à primeira vista. Aquele casamento chinfrim que parece detonar de vez com toda magia. E nem poderia ser de outra forma. Essa é a história da mulher ou do homem que se torna inteiro em si mesmo. Virgem, tanto quanto Ártemis, Atena, ou mesmo bem à moda vestal. Mais uma velha e verdadeira história pisada: o amor dentro de nós. E só depois o amor também mundo afora. Só bem depois é que vem a alquimia de Afrodite. E, entre as duas etapas, todo tipo de dúvidas, confusões e conflitos aparentemente insolúveis. Aqueles domínios de Hades e sua esposinha raptada. Ninguém dava nada para ela, mas Perséfone se tornou rainha. Pensando, mais de perto, naquele casamento entre a princesa mais velha e o simples soldado: eis, pois, a união consigo mesmo. O amor que se dá a si. De repente, aquele homem, na verdade, seria somente uma das tantas pessoas que existem dentro de nós. O homem comum se casa com a princesa para que ela possa não só pisar, mas manter os dois pés firmes no chão. No entanto, veja bem: sem nunca perder de vista o contato com a riqueza do nosso mundo interior, onde os sonhos são a própria vida. Lembre-se dos maravilhosos galhinhos que ele traz ao castelo para que todos vejam! Que pena se eles ficassem para sempre escondidos, sem dar aquele toque especial à vida, tão batida e cheia de azia. Os galhinhos, com seu brilho, mantêm viva a memória de um lugar que se deve proteger com afinco, com pirlimpimpim pululando no ar: os três bosques de pedras preciosas e aquele castelo maravilhoso cheio de música, vinho, comidinhas e príncipes encantados que nos esperam todas as noites na margem do rio (ai, suspiros de menina!...). A partir desse casamento, acontece o reconhecimento de que o indivíduo se tornou virgem, ou seja: inteiro em si mesmo, correto? Uma história de amor, de todo modo. O encontro do sonho com a realidade. E, a partir de então, é que se estará pronto para viver uma história que fale algo sobre o amor – agora sim – entre um homem e uma mulher. A luz que está contida na escuridão Os passeios, naturalmente, são noturnos, mas apontam para uma nítida fotografia das qualidades ocultas de cada um. Um mundo invisível não é apenas um surto do demo, um grito sem forma, um caos de maldade, de vozes assombradas, de sombras fantasmagóricas a espreitar pelos cantos escuros. É muito mais do que uma face perversa, repleta de fantasmas que escondemos do mundo, enterrando e tentando esquecer. É o colorido do dia, são as intuições positivas, os pequenos prazeres da vida que, tantas vezes, deixamos de aproveitar. É a sincronicidade. A fertilidade que se colhe daquele estágio entre o dormir e o acordar (tem coisa melhor que estar exatamente no limiar?). É a vida mais viva, enfim. É seguir o que chamamos por vezes de coração, e que são os impulsos mais puros do corpo, aqueles que nos mostram o que realmente nos faz bem, o que é real e verdadeiro para cada um. É ser espontâneo, valorizar o que temos de melhor e nem mesmo sabemos, porque não nos permitimos nos abrir para uma experiência que não tem mente, só alma. É estar em contato consigo mesmo, em essência. É autoajuda instantânea e puríssima em cascata. Só ver para crer. Ou melhor, deixar-se sentir e ver onde vai dar. O segredo revelado ou a morte Assim como podemos ser princesas com lindos vestidos e novos sapatos, saindo escondidas à noite para dançar, também podemos ser coisa bem pior. Por vezes há um tirano dentro de nós. Um rei mesquinho e exigente, nos causando diferentes nuances de autossabotagem. Esse rei ordena que o segredo contido no mundo-glíter das princesas seja explicado em um prazo de três noites. Ele não admite sequer uma falha: passado o prazo, a morte certa. Pode chorar! A morte, sem nem sombra de piedade. O pobre e aborrecido soldado oferece, pois, a própria vida em nome de sua missão. A estratégia extremista do rei visa à eficiência, ao melhor resultado possível, à vitória certa. À total precisão, assegurando sua proteção contra supostas forças desconhecidas que possam, por ventura, desestabilizar ainda mais a sua situação, que já não devia andar muito boa. Afinal, quando há risco de vida, existe uma ameaça. Há estranhos a espreitar seus domínios, coisa que pode mesmo assustar por demais. Ele vagamente pressente que poderia muito bem endoidar, e de vez. O perigo da exploração Que podemos dizer desse rei que mata, com requintes de crueldade, tudo que não pode ser explicado? De um rei que torna explícita a falta de comunicação com o mundo intuitivo? Ele está fechado para o inconsciente. Sente um desprezo, uma descrença pelas mensagens sopradas por anjos, fadas e demônios. Talvez por medo destes últimos, ele fique surdo para todo o resto também. Finge não ver os sinais. Mas bem no fundo, uma vozinha, bem baixinho, cutucando seus ouvidos todos os dias... Sem querer tomar partido, mas esse comportamento duvidoso do rei é mesmo de se entender. Pode ser que essa exploração seja mesmo perigosa. Ele não sabe o que ganharia se cedesse. Mas sabe o que tem a perder. Não é da noite para o dia que se constrói um império. O rei, soberano, quer defender aquilo que conquistou com sua luta. No entanto, de todo modo, a censura imposta ao desconhecido pode sufocar rápidas revelações que poderiam servir para ajudar a enfrentar com muito mais segurança os nossos maiores conflitos. O rei simplesmente se recusa a conhecer o seu lado mais selvagem. Na versão recolhida por Câmara Cascudo, Os sete sapatos da princesa, um padre benze uma caixa que explode. De lá saía um ser que guiava a princesa para um mundo diferente, bem distante do nosso. Explicitamente, mostra-se algo de demoníaco, um elemento maligno que deve ser expurgado. É a caça às bruxas e sua magia supostamente negra, negríssima, Satanás. Entretanto, essa coisa difícil de descrever existe, não há como negar. As provas estão sobre a mesa e nem parecem tão temíveis quanto haveriam de ser. Galhinhos de ouro, de prata e diamantes... de fazer brilhar os olhinhos da gente. Os olhos cheios de cílios de baratinha apaixonada. Como a água escorre e nos escapa Num lado, o passeio noturno das princesas bailarinas. No outro, a patrulha consciente do rei. Tem algo errado por aqui, não? Como se poderia apreender a totalidade do mundo subterrâneo unicamente pelo ponto de vista de um tirano? Logo ele, que se acha tão raiz, mas fica na superfície das coisas cotidianas. O mistério assim o é justamente por ser indecifrável. O mágico, apenas, sem maiores explicações. Escorregadio, descendo pelo corpo, para só então alcançar o chão e tocar os nossos pés. Não é à toa que o soldado precise de três excursões para explicar com certa desenvoltura o que estava acontecendo naquelas terras tão ermas. O domínio dos entes submersos é escorregadio, nebuloso, fechado para uma investigação ordenada e racional. Ele se esquiva, é preciso ter paciência e respeitar o seu ritmo atemporal. Nos prega peças, mas também traz a resposta na lata e certeira. Só para ilustrar melhor, mais dois contos folclóricos que brincam com essa ideia. Um deles se chama A filha do pescador. Também nessa história o rei impõe a um pobre pescador uma charada impossível, ou ele perderia sua filha. Ingrato soberano! Pois que o pescador tinha encontrado uma linda joia no mar e resolveu, contra a vontade da filha, dá-la de presente ao tal rei. Tanto a joia perigosíssima quanto a charada (não vou contar) podem, então, representar também o nosso lado escondido, as muitas pessoas dentro de nós. Enfim, é impossível que a charada possa ser compreendida pela mente racional, por meio de uma abordagem tradicional. A solução da moça nos mostra isso muito bem! Algo que não se pode entender por meio das palavras apenas, por ser metáfora escorregando pelos dedos a qualquer momento. Um deslize e tudo estará perdido, esquecido mais uma vez. O outro conto se chama As doze janelas. Dessa vez quem ameaça de morte os pretendentes a realizarem a tarefa é a própria princesa! O prêmio, ela mesma, linda, é claro... E acontece que, por maiores que fossem as lentes de suas janelas poderosas, ela não podia ver as coisas realmente importantes claramente. A dúvida e o questionamento sempre devem existir. Os reinos distantes não se mostram por inteiro ao observador comum. Novamente, o mistério que deve ser preservado. As doze janelas da princesa poderiam ser resumidas em uma só, porque todas elas só veem os objetos pelo mesmo ângulo, todas limitadas por um mesmo ponto de vista. Nem tudo pode ser explicado pela lógica pura. A vida vai muito além da razão. Batendo duas mãos uma na outra temos um som. Qual é o som de uma única mão? Um oásis no fundo do deserto Para variar, já vimos que, também no nosso conto, o rei exige que os pretendentes à mão da princesa realizem uma tarefa aparentemente impossível sob pena de morte. E é realmente impossível se tiver de ser executada apenas pelo rei. Para começar a entender o mistério, precisa-se de um impulso criativo que só pode ser fornecido por um outro ator. A intuição dita a mágica necessária para a realização da tarefa. Por isso que as duas primeiras tentativas costumam ser falhas. No nosso conto, o soldado não falha, mas também não revela o segredo antes de colher as provas que demonstrariam a veracidade do seu relato. As duas primeiras tentativas são baseadas apenas na mente e em seus padrões preexistentes, que de nada adiantam. Estão viciados a sempre enxergarem o mundo com os mesmos olhos. Costuma haver muito esforço, tanto físico quanto intelectual, e resultados módicos. A imaturidade, ou a inexperiência, é a grande marca que acompanha esse estágio na vida de alguém. Ela é a responsável pelo fracasso e pelo transtorno das primeiras tentativas. No entanto, elas representam um ensaio para o que deve acontecer a seguir: é errando que se aprende, e é a experiência malsucedida que nos impulsiona a experimentar novos métodos. Se tudo der errado, o soldado já sabe que morrerá de todo jeito, e parece valer a pena tentar, de todo modo. Isso é o que também acontece quando temos como objetivo realizar uma tarefa a todo custo, e rapidamente. Quando se tem uma ideia fixa, a mente se torna obsessiva e ordena que algo seja feito ou descoberto a qualquer preço. Os resultados costumam ser catastróficos, podendo envolver até algum acidente, do tipo queimaduras, quedas e fraturas. É necessário esperar pelo tempo necessário de amadurecimento antes de atingir a meta. É preciso sentir que nem sempre os nossos objetivos mais caros são a meta em si. Talvez sejam apenas uma das etapas – não necessariamente a mais urgente, nem mesmo a mais importante. A espera e a experiência são parte do negócio e o tempo necessário deve ser respeitado para que ocorra o contato com as forças numinosas, que nos indicarão o caminho no tempo certo. Simples, mas verdadeiro: É preciso ter confiança no potencial único existente em cada um. Um refúgio necessário Num turbilhão: O mundo subterrâneo do nosso conto expõe a materialização de um refúgio necessário para se recompor das batalhas diárias. Essa experiência possibilita que se volte mais forte e revigorado para enfrentar os nossos dias, os perrengues do mundo real. O passeio é um convite para aceitar aquilo que se traz do outro lado como oportunidade de reciclar-se, de usar novos sapatos. De integração, trazendo para a vida cotidiana e sem festas e danças e príncipes e bosques e castelos e pedras preciosas o novo – novos pontos de vista para que a vida não se desgaste. Nem tudo são flores Um pequeno parêntesis. Para os mais avoados, é fácil se perder nessas reluzentes abobrinhas dos mundos adormecidos que se encontram abaixo do chão do nosso quarto. Isso é fugir da forca e negar a realidade, é resistência para enfrentar a chatice que preenche uma boa parte do nosso tempo e das nossas vidas. Mas o cotidiano, sempre. A alma no corpo, e o corpo na terra. Sem brilho nem glória, nada e só. Caso contrário, nossos habitantes interiores começam a brigar muito feio, e daí vem a cisão, muito prejudicial, podendo abalar seriamente a sanidade e a própria saúde. Cair no inconsciente e viver na fantasia é uma forma extrema de alienação. Esse é o maior risco de mergulhar por muito tempo nas águas tanto do mar quanto da Lua. Você pode se afogar e não conseguir voltar mais. A importância de trazer para o chão Antes de o soldado descobrir, a pedido do rei e sob pena de morte, o segredo das princesas, estas não faziam nada com as maravilhas vividas por lá. Pouco ou nenhum aprendizado que pudesse ser usado no dia a dia, mundo de concreto árido. Um sonho besta e fútil. Não usavam a energia como ferramenta para guiar a vida de vigília. Uma vida na balada alternativa. Não queriam encarar os palácios e bosques terrenos. Nem os homens de verdade tais como são. Só príncipes idealizados, que pudessem satisfazer todas as delícias das suas próprias projeções. Embora houvesse uma travessia, os príncipes remando e transportando as princesas de uma margem à outra, não havia a compreensão claríssima do relâmpago. Era como dar um passo para frente na ida, mas dois para trás na volta. Foram muitos os prazeres, inúmeras as opções. Mas se tudo isso ficasse somente na clandestinidade, no festejo transgressivo, não seria possível trazer o encantamento para a terra. Quando as princesas, juntamente com o soldado, voltaram da última vez, aí sim trouxeram e usaram a bagagem descoberta. A experiência havia sido internalizada. Para o bem ou para o mal, há um movimento energético que visa harmonizar tudo que está em desequilíbrio. Não se pode viver eternamente a luta travada entre princesas e soldado a mando do rei. É uma luta perdida, improdutiva. Nunca a ruptura. A meta é a integração. Para acertar as faltas ou os exageros. Desse modo, evitamos a duríssima queda de uma vida dupla. Duas, três, mil vidas separadas e que não se entendem entre si. Não dá não. Que possamos evitar o risco de se perder na fantasia e sermos incapazes de colocar os pés no chão novamente. A travessia é o momento da transmutação. Não tem mais retorno, somente alquimia. As princesas voltam com os sapatos gastos: depois da experiência algo muda, os velhos padrões estão ultrapassados e não podem mais ser usados. É preciso criar novos meios de viver. Melhores, mais belos, intactos de cristal. Uma outra história sobre a descida e a transformação Uma história censurada e muito bonita que também fala sobre a descida a reinos desconhecidos é Inanna, encontrada na tradicional mitologia suméria. Nosso conto fala sobre a descida mais leve e sem traumas. Sobre festas e luzes animadas. A descida de Inanna não é nada assim. Ela ensina o mesmo de outro modo: para encontrar-se consigo mesmo, para saber quem realmente somos, é preciso, por um momento, desprender-se das circunstâncias externas (roupas). O mergulho no pior dentro de nós. O vilão dentro de cada um. A descida até os impulsos mais baixos. As muitas noites de terror. A descoberta da maldade que desconhecíamos também ser parte de nós. Uma descida muito necessária, benéfica e cartática. Para entender o mal é preciso olhar para ele. Para tirar o mal de dentro de si, é preciso reconhecer que ele está, sim, dentro de nós. O encontro com o mal dentro de si poderia acontecer o tempo todo, enquanto circulamos por aí. Mas geralmente não vemos, porque “não era tão grande assim”. Mas de repente, o susto... Num dado ponto de nossa vida, quando estamos desprotegidos, despreparados (a gente jurava que era luz...). Num dado ponto de nossa vida, num momento de crise. De transição. De mudança. De sofrimento. O extremo psicológico. Conhecer-se por inteiro é a conquista da libertação. São os anos que dedicamos aos porões empoeirados, ao ar envenenado, a tudo que corrói e nos mata pouco a pouco. Inanna desce degrau por degrau, até se despir de todas as suas joias e roupas. E o prêmio final, ser morta e pendurada num gancho de açougue! Imagina quanto mal existe por trás de nossa suposta luz! A cada peça de roupa que Inanna deixa para trás quando desce um degrau, mais um passo para a autodescoberta, por meio da dor e da humilhação. Ela precisa perder tudo que tem para saber o que sobra. Depois que nada mais lhe pertence, surge então a visão da pessoa real, de quem ela é em essência. Mas e quanto a nós, que seriam essas roupas, o que seriam todos os nossos pertences? O que eles podem revelar sobre a nossa própria verdade, que é a única coisa que de fato possuímos aqui na Terra? Qual o maior medo que se tem? É este que Inanna encontra. Ao olhar para sua irmã ela experimenta o mal dentro de si, o outro é apenas reflexo. Em nosso pior, eis que nos vemos descendo, rumo ao que realmente importa em nossa vida. Brincadeira na sujeira Tanto na descida de Inanna quanto no nosso conto, podemos pensar que aquelas incursões ao subterrâneo também podem indicar os nossos relacionamentos mais sujos. Os mais desonestos, porque nos ferem enquanto se desenrolam. Aqueles que demonstram total descaso com a nossa verdade e com os nossos sentimentos, com o nosso instinto. Fazemos à toa o nosso corpo sofrer. Uma queda secreta por cantos vulgares. O preço do falso prazer. O preço de cultivar a ilusão do controle, achando que é possível fazer amar, mas esquecendo-se da própria entrega. Ou ainda amando e achando que a entrega de um é o bastante para fazer que o outro também se desarme como forma de retribuição pelo suposto amor oferecido. Não tem como isso dar certo nunca, é claro que não tem. No final, o gosto amargo de sentir-se usado, exausto, exaurido, vampirizado, sugado e semi-morto, largado no chão. A vontade de matar o outro, depois de se matar, enfim, mas não. Mas não. O que fazemos, depois desfazemos. A vida se constrói também com o desacerto. Continua-se, com olhos molhados a serem secados por luz do Sol, coração reconstruído, apesar dos cacos colados à mão. Uns aninhos à toa, mas nada trágico, né. Matamos de vez o drama. Negamos a ópera e incorporamos alguma sabedoria quando somos sinceros o bastante para passar por cima de tudo isso sem virar a estátua viva da desilusão. Voltar para o agora. Voltar para o corpo, sempre o nosso corpo. Quanto maior a luz, maior também será a escuridão. E a cura, os amores inocentes. Que nem por isso deixam de ser suspiro. Com a vantagem de evoluírem, lentamente, para algo mais pitoresco do que o previsto e mais intenso do que os amores que se perdem molhados na lama. O olhar encantado da criança A criança trava o contato fácil com o lado de lá. Ela já está por dentro desse universo, semelhante aos jogos, às brincadeiras, ao faz de conta. Mas, quando adultos, ao crescer perdemos parte dessa ponte que se fazia espontânea. Os adultos, como o rei, tornam-se críticos severos, querem saber tudo como exatamente deveria ser. Cada coisa no seu devido lugar. Mas isso não é possível e acaba por desencantar e destruir a magia possível da vida. Os adultos colocam vários soldados desconfiados por aí para patrulhar. Desprendem-se dos instintos e da criatividade. Ficam tolos e desalmados. Perderam-se da sua criança interna. Não há leveza nem a simplicidade de apreciar a beleza das coisas mais banais. E menos ainda das sobrenaturais. Doze princesas e um segredo Não é um exagero haver doze princesas e um só rei querendo mandar em todas elas? O rei pode até ser mais forte às vezes, o que é necessário para manter a saúde e não enlouquecer de vez. O ego, fazer o quê... Mas se isso for longe demais, a energia vital fica bloqueada. O tirano dentro de nós assume o comando mais uma vez. Quanto às doze princesas, quem sabe não são uma só. Somente uma princesa talvez não fosse o bastante para chamar atenção do rei por meio da sua fuga. Elas sugerem, assim indiferenciadas, o quanto o rei não tinha muita noção de quem elas eram e do papel de cada uma na sua vida. Mas apesar de não terem personalidade definida, por serem múltiplas, conseguem suscitar uma grande pressão no sentido de chegar até as barreiras impostas pelo rei. Elas se fazem ouvir ao seu modo. Além disso, no final das contas, se as doze princesas são a mesma, então tudo bem uma só delas se casar com o homem real, em oposição ao príncipe feito de fumaça. Eles se casam! Enfim, a integração. De todos dentro de um só, vivendo em paz e preparados para o que der e vier. Os problemas podem até continuar a existir. Não atingimos aqui nenhuma solução final. Mas muda-se o ângulo de observação. Desse modo, muda-se também a conduta, o que pode não resolver tudo, mas faz com que o mundo interno se reorganize e esteja mais inteiro. E, assim, pela solução criativa, algo a mais acontece. Mudanças nos padrões mentais podem fazer milagres na hora de enfrentar as grandes questões da vida. Mudar o jeito de pensar a vida ajuda a construir um mundo mais belo. Nos tira da selva de pedra. A natureza explica Bosques de ouro, prata e esmeraldas... As pedras preciosas ficam escondidas na terra. Na mais pura energia da terra. Por isso, elas estão envoltas em um campo vital e energético poderosíssimo. Não à toa são usadas nas artes holísticas para equilibrar o campo etérico. É preciso encontrá-las, embaixo da superfície. Elas são o melhor que existe dentro de nós. À disposição, para nosso uso. Trazemos essas pedras para a nossa consciência, para a nossa vida de vigília. Elas representam a criatividade que vem da terra. Elas são instrumentos para materializar o que antes só parecia um sonho. Que não podia ser feito apenas com o nosso pensamento ordenado e os nossos esforços cotidianos. O soldado traz um galho de cada para provar que aquilo existe, que ele realmente esteve naquele lugar. E os galhinhos, maravilhosos, se tornam os nossos guias sutis. Só ouve quem der atenção. O silêncio impossível da mente... Imaginação ativa Vamos, agora, construir mentalmente a cena em que nos levantamos e colocamos o melhor vestido e o melhor sapato, descemos as escadas e entramos em um mundo mágico. O que tem nesse lugar? Quem está lá? O que fazemos? Como nos sentimos? O que podemos trazer de volta para tornar nossa vida mais enriquecida? Uma hora ou outra, talvez quando menos você esperar, de repente o lampejo. Tudo claro, não é preciso dizer nada, mas você sabe que já entendeu. De repente, será possível encontrar uma solução natural, sem esforço. Aquela que flui e nos chega com tranquilidade... Todo esforço praticado é válido de certo modo. Anos e anos sem encontrar o caminho, e suando. Mas depois, na hora certa, ele vem. E só vem porque é chegada a hora de transformar os esforços em frutos. Portanto, as lutas e as dificuldades sozinhas podem gerar mais atrito do que resultados curativos. A ajudinha invisível é bem-vinda e pode ser a chave para a realização, para a materialização de um projeto ou, mais humildemente, para a certeza de que estamos trilhando nosso devido caminho, seja lá qual for. Pequenina observação final Não existe um final feliz definitivo, porque mesmo as melhores soluções são temporárias e outras crises virão depois. E depois, novas soluções. Tudo é fluxo, tudo é movimento.
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